Novo Modelo de Polícia para o Brasil
Publicado sexta-feira, 19 de julho de 2013
A
unificação das polícias não somente é viável, mas absolutamente
indispensável. Esse é um problema estrutural da república brasileira:
cada instituição é autônoma em relação às demais. E o fracasso disso é
histórico. As polícias civis e militares, por exemplo, atuam de forma
isolada - em vez de concentrarem seus recursos e seus esforços num mesmo
objetivo -, diminuindo drasticamente sua eficiência.
Em dezembro
de 1999, em São Paulo, foi lançada a proposta de emenda constitucional
que reestrutura as forças de segurança pública no país. Redigido por um
grupo formado por ouvidores de polícia dos Estados do Rio Grande do Sul,
São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pará; juristas; membros dos
movimentos de luta pelos Direitos Humanos e autoridades eclesiásticas,
além deste secretário, o documento foi entregue pelo Cardeal Emérito de
São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, para o Secretário Nacional de
Segurança, José Osvaldo Vieira, representante do Ministro da Justiça.
Dias depois,
o texto foi encaminhado aos presidentes do Congresso Nacional e da
Câmara de Deputados. A iniciativa abrange diversas finalidades, dentro
do propósito finalístico de alterar a estrutura policial dos Estados,
criando simultaneamente um novo e mais moderno modelo de persecução
penal. O alicerce desse novo modelo radica-se, sem dúvida alguma, no fim
da dualidade na função policial. Com efeito, a extinção das polícias
civis e militares deve proporcionar uma estrutura unificada, denominada
de Polícia Estadual, com vocação para o exercício integral das funções
policiais.
Assim, essa
nova estrutura policial teria em seu interior um braço voltado às
funções de investigação, para a instrumentação da ação penal, e outro
braço, uniformizado, cumprindo a função de policiamento preventivo e
ostensivo.
É importante
ressaltar que o propósito básico da alteração é a integração dinâmica
das funções policiais, hoje repartidas entre as polícias civis e
militares. Sob comando único, e com atuação integrada em cada unidade
territorial, prevenção e persecução reunidas, agiriam harmoniosamente
para dar cabo do difícil mister de controle da criminalidade.
Não se trata
de uma unificação pura e simples das duas polícias existentes, mas sim
de um novo modelo, com novos princípios e novas características.
A estrutura
será remodelada, de tal modo que se estabeleçam cinco graus
hierárquicos, em que o salário mais alto seja, no máximo, quatro vezes
maior que o mais baixo. Nesse sentido, a diminuição dos graus da
carreira deve preservar o princípio hierárquico, estabelecendo-se para
tanto regime disciplinar próprio e compatível com a natureza da função
policial.
Seguindo
essa linha de raciocínio, a nova polícia, em sua composição, deve
pautar-se pela proteção da probidade administrativa e pelo zelo da
moralidade no exercício das funções, motivo pelo qual a migração dos
quadros das polícias civis e militares para a polícia Estadual deve ser
feita mediante avaliação da vida funcional e dos antecedentes criminais
de cada um de seus membros, conforme critérios a serem definidos em lei.
Os Tribunais
e Auditorias Militares Estaduais, como consequência dessa nova
estrutura, serão extintos, o que implicará que todos os policiais,
quando acusados do cometimento de algum crime, serão julgados pela
Justiça Comum, segundo um padrão uniforme de aplicação de sanções
penais.
Por isso, a
proposta estabeleceu como traço diferenciador entre o sistema vigente e o
que se quer ver instalado, a supressão da inquisitorialidade, com o
consequente desaparecimento do inquérito policial.
Importante
salientar que essa vetusta figura do inquérito policial há muito tem
recebido críticas acerbas de todos os que comungam dos mesmos ideais por
uma sociedade mais justa, conjugando a diminuição da impunidade e o
respeito aos direitos do acusado.
A obtenção
dos dados elementares à instrução da ação penal será feita pela Polícia
Estadual, mediante registros de ocorrências, lavratura de autos de
prisão em flagrante, promoção de diligências investigativas através de
relatórios circunstanciados ou quando requisitados pelo Ministério
Público ou pelo Poder Judiciário.
A
arquitetura desse novo modelo foi baseada na fixação de um procedimento
monofásico e de caráter judicial. A existente diacronia será substituída
por um sistema sincrônico das instituições.
O Poder
Judiciário, como regulador, teria o juízo de suficiência das provas,
podendo, no decorrer de ação penal, determinar seu sobrestamento sempre
que os elementos de convicção revelarem – se insuficientes à imputação.
Palmilhando esse caminho, cremos cumpridos os objetivos que animaram a
propositura.
Um órgão,
independente e autônomo, sem atrelamento a qualquer dos Poderes da
República, teria sob sua responsabilidade todos os instrumentos
necessários à formação do juízo de acusação. Sem qualquer contato com a
arrecadação dos dados elementares para a propositura da ação penal,
vestir-se-ia de maiores poderes, como órgão garantidor dos direitos do
cidadão acusado, vez que ao julgador seria atribuído o juízo de
suficiência de provas para a acusação.
O Ministério
Público, como articulador, promoverá diligências investigatórias,
diretamente ou em concurso com a polícia, para reunião dos elementos
necessários e suficientes à propositura da ação penal pública.
Sob outro
aspecto, a função policial, como executor, não ficaria desmerecida, mas,
sob a formatação correta, alocada no seu devido lugar. Com a extinção
do inquérito policial, seria abolida a chamada polícia judiciária, dando
lugar a um organismo policial investido de funções de polícia
administrativa, preventiva e investigativa.
Reafirme-se que não se pretende a substituição do inquérito policial por outro procedimento, igualmente burocratizado e ineficiente, a cargo do Ministério Público. A coleta das provas necessárias à denúncia, embora submissa aos princípios da oficialidade e da busca da verdade real, seria feita de maneira informal, de tal modo que eventual futura condenação só poderia estar alicerçada nas provas produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório.
Reafirme-se que não se pretende a substituição do inquérito policial por outro procedimento, igualmente burocratizado e ineficiente, a cargo do Ministério Público. A coleta das provas necessárias à denúncia, embora submissa aos princípios da oficialidade e da busca da verdade real, seria feita de maneira informal, de tal modo que eventual futura condenação só poderia estar alicerçada nas provas produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório.
A presente
iniciativa, na coerência da arquitetura do novo sistema, pretende a
unificação das polícias estaduais. Polícia Civil e Polícia Militar
deixariam de existir, dando lugar à assim chamada Polícia Estadual.
Esta, similarmente à Federal, estaria organizada segundo estatuto
próprio, em que a disciplina e a hierarquia estariam respeitadas. Porém,
uma significativa diminuição dos graus da carreira garantiria uma maior
proximidade entre a base e a cúpula da Polícia, permitindo a integração
de funções e a unificação de comando.
A atividade
policial, já adequada à sua finalidade ontológica, continuaria sob o
controle externo do Ministério Público e sob a fiscalização das
ouvidorias de polícia, que se incumbiriam ainda de investigar eventuais
infrações de policiais e de promover auditorias quanto ao funcionamento
do organismo policial, o que possibilitaria maior transparência nesse
setor da Administração Pública.
Os
departamentos de trânsito não estariam mais a cargo da polícia, mas sim
da Secretaria Estadual encarregada da área de transportes. De igual
modo, o Corpo de Bombeiros passaria à condição de órgão da Defesa Civil,
atribuindo-se à Polícia Estadual só as funções que lhe são típicas.
As
peculiaridades da atividade policial indicam a necessidade de um regime
jurídico diferenciado. Por isso, a cogitação de aposentadoria
compulsória aos 30 anos de serviço e o período de dez anos para obtenção
de estabilidade no serviço, requer um estatuto disciplinar próprio,
zelando pela hierarquia e pela disciplina necessárias à eficiência dos
serviços de segurança.
Não escapou
de nossas preocupações a irregular situação dos detentos das cadeias
públicas, em especial aqueles que permanecem alojados inadequadamente
nas Delegacias de Polícia. Há muitos anos são formuladas reclamações e
divulgado o inconformismo de diversos segmentos sociais com essa
situação de descalabro no encarceramento de detentos provisórios e
reeducados em Distritos Policiais.
Em face
dessas circunstâncias, fixou-se um prazo para a apresentação de um
cronograma a ser rigorosamente cumprido de realocação dos detentos no
sistema penitenciário, sob pena de os Governadores de Estado e do
Distrito Federal incorrerem em crime de responsabilidade. Esse novo
modelo de polícia não se situa no vácuo, mas dentro de um novo sistema
de persecução penal.
A evolução
social que o país vem apresentando nos últimos anos, sobretudo após a
reinstalação do sistema democrático que, privilegiando a liberdade de
informação jornalística, possibilitou que viesse ao conhecimento público
a existência de extensas cadeias criminosas, dotadas de organização e,
não raro, com conexões no poder público, quando não nas próprias
instituições policiais encarregadas da investigação criminal.
Sem
menoscabo dos relevantes serviços prestados pelos corpos policiais
existentes, o fato é que o quadro criminológico emergente do atual
estágio de desenvolvimento das relações sociais reclama, igualmente,
evolução. Esse, na verdade, o ponto básico que animou a elaboração dos
dispositivos encartados no presente projeto de emenda constitucional.
Nesse
sentido, essa evolução, que entendemos materializada nas modificações
sugeridas, foi fixada em dois pressupostos básicos: a eficiência na
persecução penal - sobretudo em relação aos chamados crimes de colarinho
branco - e o respeito aos direitos humanos.
De igual modo, a experiência internacional, embora com grande variação de conteúdo, revelou que o modelo bifásico de procedimentos não só se peculiariza pela ineficiência na sua finalidade persecutória, como também vem marcado por desrespeitos constantes aos direitos inalienáveis da pessoa.
A aparente ousadia da reforma proposta se desvanece quando verificado que a maior parte dos países do mundo, embora sem uma comunhão absoluta de objetos, adotou sistema análogo, caracterizado pela inexistência de inquérito policial e pela existência de um único organismo policial, constitutivamente plural por especializações e elastização horizontal da autoridade e da responsabilidade.
De igual modo, a experiência internacional, embora com grande variação de conteúdo, revelou que o modelo bifásico de procedimentos não só se peculiariza pela ineficiência na sua finalidade persecutória, como também vem marcado por desrespeitos constantes aos direitos inalienáveis da pessoa.
A aparente ousadia da reforma proposta se desvanece quando verificado que a maior parte dos países do mundo, embora sem uma comunhão absoluta de objetos, adotou sistema análogo, caracterizado pela inexistência de inquérito policial e pela existência de um único organismo policial, constitutivamente plural por especializações e elastização horizontal da autoridade e da responsabilidade.
Inquestionável
que a concretização das modificações ora sugeridas implicaria
superlativo ganho de eficiência. Cada instituição teria sob sua
responsabilidade as funções que naturalmente lhe pertencem. Ganharia a
sociedade, com um sistema persecutório mais eficaz. Ganharia o cidadão,
com a adoção de mecanismos onde atrocidades, como a tortura,
dificilmente teriam lugar. Por fim, também ganharia o cidadão acusado,
com o fim do “indiciamento” e da própria inquisitorialidade. Quando
formalizada uma acusação, já haveria simultaneamente um juízo de
garantia por parte do Poder Judiciário.
Como se vê,
as medidas alvitradas florescem de um forte consenso social, que alia a
busca da eficiência - contraponto da impunidade - a um estado de
respeito efetivo aos direitos humanos, os quais, diga-se, comumente
violados justamente pelos mesmos que se aproveitam da ineficiência do
sistema penal em relação aos “crimes de colarinho branco” e os riscos da
distribuição puramente vertical da autoridade.
Em última
análise, a iniciativa tem por objetivo a criação de um Novo Modelo de
Polícia intrinsecamente subordinada ao Poder Civil, pautada na
eficiência e defesa da legalidade democrática, que atenderá aos efusivos
clamores da sociedade brasileira que, entendemos, tem manifestado de
diversas formas, reiteradamente, a necessidade de ruptura do atual
modelo de Polícia, inspirado no Controle Social.
Principais Pontos
- Fim da dualidade na função policial: extinguem-se as polícias civis e militares dos Estados e cria-se uma Polícia Única Estadual, estabelecendo-se um corpo de investigação e outro uniformizado preventivo-ostensivo, com previsão de dois anos para a adequação;
- Extinção dos Tribunais e Auditorias Militares Estaduais: todos os policiais, quando julgados, serão submetidos à Justiça Comum dos Estados;
- Extinção da fase inquisitorial do procedimento penal: fim do inquérito policial;
- Nova estrutura: a Polícia Única Estadual terá cinco graus hierárquicos;
- Piso e teto salariais: será instituído um padrão nacional de salários, sendo que a diferença entre o menor e o maior não seja superior a quatro vezes;
- Controle externo: as Ouvidorias de Polícia, órgãos autônomos e independentes, sem vínculo de subordinação com a Polícia, também farão o controle externo da atividade policial;
- Médicos legistas e peritos criminalísticos: todas as carreiras técnico-científicas deixarão de fazer parte da carreira policial, transferindo-se para o corpo funcional do Judiciário;
- Corpo de Bombeiros: passarão a integrar o corpo funcional da Defesa Civil dos Estados;
- Detrans: deixarão a área de segurança para integrar a estrutura das Secretarias de Transportes dos Estados, ou órgãos afins;
- Presos: a Polícia não será responsável por presos condenados ou provisórios;
- Tempo de serviço: o período máximo para a carreira policial será de 30 anos;
- Efetivo: os quadros das Polícias Estaduais serão compostos pelos integrantes das polícias civil e militar, que passarão por avaliação de idoneidade e antecedentes.
Por: JOSÉ PAULO BISOL é desembargador aposentado, jornalista, ex-senador e secretário da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul
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